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A natureza binária do estelionato previdenciário

02/07/2013, publicado por

João A., com 57 anos de idade, trabalhador rural, analfabeto, incapacitado permanente para o trabalho, em razão de acidente, residente em zona urbana há mais de cinco anos, foi convencido por Jofre R. e Saulo F. a solicitar benefício previdenciário. Após análise da solicitação, cientificou-se a João que não haviam sido atendidos os requisitos para a obtenção de benefício. Jofre e Saulo prometeram resolver a situação, contanto que João assinasse e apresentasse diversos documentos, entre os quais, procurações, carteira de trabalho e declarações. Ajustaram que os valores relativos aos seis primeiros meses de pagamento do benefício previdenciário e eventuais valores retroativos a serem recebidos por João seriam dados em pagamento a Jofre e Saulo, que os repartiriam em iguais partes. Meses depois, João passou a perceber aposentadoria por tempo de contribuição e levantou a quantia de R$ 5.286,00, referente aos valores retroativos. Entregou-a a Jofre e Saulo, conforme ajustado. Após dois anos de recebimento desse benefício por João, no valor máximo legal, o INSS constatou fraude e, prontamente, suspendeu o pagamento do benefício. Nessa situação, João A., por sua condição pessoal e circunstâncias apresentadas, deve responder pelo crime de estelionato contra a previdência social, de natureza permanente, consumando-se no recebimento indevido da última prestação do benefício, contando-se daí o prazo da prescrição da pretensão punitiva (Prova objetiva preliminar do 4º Concurso Público para ingresso no cargo de Defensor Público Federal de Segunda Categoria).

Em tema de estelionato previdenciário, o agente que perpetra a fraude contra a Previdência Social recebe tratamento jurídico-penal diverso daquele que, ciente da fraude, figura como beneficiário das parcelas. É o que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal denomina de “natureza binária” da infração (STF HC 104.880, DJ 22/10/2010). O agente que perpetra a fraude pratica crime instantâneo de efeitos permanentes, cuja consumação se dá no pagamento da primeira prestação do benefício indevido; já o agente beneficiário da fraude pratica crime de natureza permanente, cuja execução se prolonga no tempo, renovando-se a cada parcela percebida. Nesse caso, a consumação ocorre apenas quando cessa o recebimento indevido das prestações.

E qual seria, no estelionato previdenciário, o termo inicial para a contagem da prescrição? Há duas situações distintas: 1ª) Para o agente que perpetrou a fraude, vale dizer, praticado pelo servidor da autarquia previdenciária ou por terceiro não beneficiário, o termo inicial do prazo prescricional do crime do artigo 171, parágrafo 3º, do Código Penal, flui a partir do recebimento da primeira parcela indevida pelo terceiro beneficiário (STJ REsp 1.298.943); 2ª) Se o agente que perpetrou a fraude é o próprio beneficiário, o termo inicial do prazo prescricional do crime do artigo 171, parágrafo 3º, do Código Penal, flui a partir do recebimento da última parcela indevida pelo terceiro beneficiário (STF RHC 105.761).

O candidato a concursos públicos na área federal, contudo, poderá enfrentar dificuldades ao se deparar com a jurisprudência de alguns tribunais regionais, que seguem aplicando, de modouniforme, o entendimento de que o crime de estelionato previdenciário “é de natureza eventualmente permanente, qual seja, prolonga-se no tempo e perdura até o recebimento do último benefício indevido, uma vez que se tratam de prestações periódicas”. Destaco, quanto a esse respeito, passagem de um voto recentemente proferido no âmbito da 2ª Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região:

Neste particular, a despeito de haver adotado em outras ocasiões o entendimento de que haveria distinção quanto ao momento consumativo do estelionato praticado contra órgãos previdenciários para as figuras do intermediário e do beneficiário da vantagem indevida, curvo-me à posição majoritária desta colenda Turma. De tal sorte, dada a natureza do delito de crime instantâneo com efeitos permanentes, tem-se como data da consumação a da percepção da primeira vantagem indevida (TRF-3 ACR 00047308220014036181, DJ 20/9/12).

Note-se que a 5ª Turma desta Corte alinha-se com a jurisprudência do Supremo, no sentido de que é preciso “distinguir entre a situação fática daquele que comete uma falsidade para permitir que outrem obtenha a vantagem indevida, daquele que, em interesse próprio, recebe o benefício ilicitamente” (TRF-3 HC 00030327120124030000, DJ 26/3/12). Assim, relativamente a um fraudador que havia obtido benefício previdenciário indevido em prol de outrem, o colegiado indicou corretamente, ao nosso ver, o termo a quo do prazo prescricional (recebimento da primeira parcela indevida pelo terceiro beneficiário), conforme se depreende do trecho abaixo, extraído de julgado relatado pela juíza federal Ramza Tartuce:

O delito de estelionato praticado contra a Previdência Social tem natureza de crime instantâneo, que se consuma com a obtenção da primeira parcela indevida, não se podendo conceber que a consumação do delito só venha a ocorrer com o recebimento da última parcela do benefício fraudulento. Com efeito, o delito consumou-se quando o réu obteve a sua concessão, com o pagamento indevido da primeira parcela a beneficiária. É que, tratando-se de delito instantâneo, resta consumado quando todas as elementares do tipo se materializam. Assim, o recebimento da primeira vantagem indevida já torna consumado o delito, e tudo o mais que vem a ocorrer após não tem o condão de modificar essa situação (TRF-3, ACR 00097724420034036181, DJ 27/9/12).

Já a 1ª e a 2ª turmas, ao afastar a natureza binária da infração, têm dificuldades para assim proceder. Assim, também no que diz respeito a fraudador que obtivera benefício previdenciário indevido em prol de terceiro, o colegiado indicou o recebimento da última parcela indevida pelo terceiro beneficiário como o termo a quo do prazo prescricional, resultando na compreensão de que, para esse agente, “o estelionato de rendas mensais e periódicas é crime eventualmente permanente, iniciando-se a contagem do prazo prescricional a partir da cessação da permanência”. Desse entendimento divergiu, fundamentadamente, o juiz federal Márcio Mesquita:

Vinha sustentando o entendimento no sentido de que o crime de “estelionato previdenciário” consuma-se com o recebimento da primeira prestação do benefício obtido fraudulentamente, mas trata-se de crime eventualmente permanente, em que a prática criminosa renova-se a cada subsequente recebimento de prestação do benefício, e portanto o termo inicial da prescrição coincide com a cessação dos recebimentos. E assim o fazia por entender que, respeitadas as doutas opiniões divergentes, o entendimento contrário beneficia o criminoso que causa prejuízo de maior monta, e que durante vários anos persiste no recebimento da vantagem, deixando-o impune pela reconhecimento da prescrição, enquanto condena-se aquele que durante pouco tempo persistiu na prática criminosa. Contudo, não me é dado desconhecer que a questão restou pacificada em sentido diverso, quanto ao crime praticado por quem não é o beneficiário, pelo Supremo Tribunal Federal (TRF-3 ACR 01021283419984036181, DJ 27/7/12).

Os motivos de toda essa confusão são narrados pelo procurador da República Douglas Fischer, no artigo “A Prescrição no Crime de Estelionato Previdenciário Continuado, as ‘Ementas’ e suas (Equivocadas) ‘Interpretações’”, publicado no volume 83 do Boletim dos Procuradores da República. Recomendo a leitura, por esclarecedora. Por outro lado, caso o tema em questão seja cobrado na prova, será preciso distinguir as duas situações, indicando, com cautela, os posicionamentos de cada uma das turmas do respectivo tribunal regional, para, ao final, adotar-se o posicionamento do Supremo.