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Supremo estimula diálogos institucionais no julgamento da desaposentação

27/11/2016, publicado por

No dia 26/10/2016, o Supremo Tribunal Federal, em continuidade do julgamento do tema de número 503 da sistemática da repercussão geral, concluiu a discussão referente à denominada desaposentação.
Antes de decidir o tema, o STF submeteu-o a amplo debate, com a participação da sociedade civil, União, segurados, entidades associativas e o próprio Congresso Nacional. A decisão assim obtida não se trata de construto autopoiético ou de produto de raciocínio apriorístico e, portanto, distante das condições materiais existentes e interesses legítimos envolvidos. Os debates foram norteados não só por princípios caros ao sistema previdenciário brasileiro, direitos das partes envolvidas e possíveis impactos sociais e individuais, mas também por discussões acerca da legitimidade democrática no que concerne à realização de escolhas entre alternativas constitucionalmente possíveis.
Objetiva-se, nesta sucinta análise, destacar alguns aspectos relacionados ao processo de construção da referida decisão, sob a perspectiva do diálogo institucional que se estabeleceu no decurso de tempo em que o tema esteve submetido ao STF.
Em síntese, o que se discutiu nos autos dos referidos recursos extraordinários foi a possibilidade de o segurado renunciar a uma aposentadoria já efetivada no âmbito do Regime Geral da Previdência Social, com vistas a obter, posteriormente, e em um novo pedido de aposentadoria, cálculo que contemple o tempo adicional de contribuição, bem como os respectivos aportes financeiros ao sistema.
O tema entrou em discussão no STF em 2010, com a inclusão em pauta do RE 381.367, da relatoria do ministro Marco Aurélio. Em paralelo, o Plenário do STF, em 18/11/2011, reconheceu a repercussão geral do RE 661.256, cujo tema (503) fixou-se da seguinte forma: “Conversão de aposentadoria proporcional em aposentadoria integral por meio do instituto da desaposentação”.
Em sessão realizada em 9/10/2014, o ministro Roberto Barroso, relator do feito, houve por bem dar parcial provimento aos recursos interpostos pelo INSS, para, em suma: a) reconhecer o direito do segurado a um novo enquadramento, com eventual majoração do benefício, após um período adicional de contribuição verificado quando do retorno à atividade laboral; e b) estabelecer um critério de cálculo que considerasse, no enquadramento relativo à nova aposentadoria, não só as contribuições adicionais realizadas, mas também o fato de que teria havido percepção de benefício antes da concessão da nova aposentadoria.
Para os fins de discussão do tema sob a perspectiva que se pretende neste breve espaço, destacam-se três pontos fundamentais do voto do ministro Barroso.
O primeiro deles recai sobre o entendimento de que haveria uma situação de inconstitucionalidade, na hipótese em questão, haja vista que a Lei 8.213/91, em seu artigo 11, parágrafo 3º, impõe a obrigação de contribuir, por parte do segurado que retorna à ativa, mas não prevê nenhuma correspondência em benefício. Não seria legítimo que o segurado fosse obrigado a contribuir sem, todavia, perceber uma mínima contrapartida aos aportes a que foi obrigado por força da norma em questão. De outro lado, reconhece-se que o sistema previdenciário brasileiro, norteado pelo princípio da solidariedade, não é lastreado em uma ideia de comutatividade estrita — como seria, por exemplo, em um sistema de capitalização, por força do qual o segurado receberia exatamente o resultado de contribuições individuais ou coletivas, de um determinado grupo do qual faria parte[1].
O segundo ponto que se destaca reside no entendimento de que há omissão legislativa a respeito do tema em discussão. Ou seja, tendo a Constituição Federal deferido ao legislador infraconstitucional a tarefa de regulamentar a matéria, sob balizas estabelecidas pelos princípios constitucionais incidentes no caso, não se identificou, segundo o voto do ministro relator, uma normatização exauriente e autoaplicável à pretensão de desaposentação.
Por fim, o ministro Roberto Barroso, com fundamento nos princípios da solidariedade e do equilíbrio financeiro e atuarial, demonstrou relevante sensibilidade em relação aos possíveis impactos que as pretensões de desaposentação poderiam resultar nas contas da autarquia previdenciária.
Ora, é de se perceber que o tema, por sua complexidade, não comporta, sem maiores ponderações, a solução “textualista” apregoada por Justice Scalia[2], em seu famoso discurso proferido em 1996 na Catholic University of America, no sentido de se, simplesmente, resolver o tema a partir da extração do significado textual da Constituição Federal.
Diante das dificuldades postas em discussão pelo tema em apreço, o ministro relator objetivou apresentar solução que superasse a situação de inconstitucionalidade verificada, levasse em devida consideração eventuais circunstâncias não isonômicas, sem que, por fim, houvesse um distanciamento entre as contribuições efetivadas e a contrapartida pretendida com a revisão do benefício, assim se reduzindo eventuais impactos no equilíbrio econômico-financeiro e atuarial do sistema.
A partir de tais premissas, concluiu pela legitimidade da pretensão de renúncia de uma primeira aposentadoria e a posterior realização de novo cálculo do benefício após determinado período adicional de contribuição. Tal cálculo, todavia, para o fim de evitar situações não isonômicas, consideraria, como dados a serem aferidos à época da primeira aposentadoria, a idade do segurado e sua expectativa de vida, com os respectivos consectários no fator previdenciário.
É digna de nota a preocupação, consignada no voto do ministro Roberto Barroso, de preservar a atividade legislativa para regulamentar o tema, por meio de processo legislativo próprio, desde que observadas as premissas propostas no voto em questão. Reconhece-se, assim, de um lado, que há a viabilidade de se alcançar, por via hermenêutica, os critérios de cálculo apresentados em conclusão, e, de outro, a possibilidade de norma superveniente, obedecidas as premissas principais estabelecidas, regulamentar a matéria em questão. Aliás, nesse sentido, propôs-se que a vigência da tese defendida estaria suspensa pelo prazo de 180 dias, “caso os Poderes Legislativo e Executivo não optem por instituir disciplina diversa, compatível com as premissas da presente decisão, mediante ato normativo próprio”.
A proposta, portanto, considera a possibilidade de ser provocado verdadeiro diálogo institucional. Nessa hipótese — de diálogo institucional em tese —, o STF, tendo detectado a existência de mais de uma solução constitucional possível, fixa premissas interpretativas que deverão nortear a tomada de decisão sobre o tema e estabelece comando com eficácia limitada (no caso, temporalmente), para o fim de instar os demais Poderes a se pronunciarem quanto à solução normativa viável e consentânea com a ratio essendi do pronunciamento jurisdicional. Ignorado o prazo assinalado, impunha-se o critério estabelecido pela corte.
O pronunciamento jurisdicional caracterizado pela mitigação de determinada eficácia mandamental (ao menos temporariamente) é explicitado por autores (como Mark Tushnet) como a denominada weak-form judicial review[3] e seu fundamento está intimamente relacionado à possibilidade de especificação de uma solução constitucional válida, no âmbito de um processo legislativo, entre outras soluções também possíveis, sob a incidência de determinado arranjo normativo constitucional.
Nesse contexto, Tushnet propõe que, em determinadas situações, a adoção da weak-form judicial review pode resultar em uma forma de conciliar a autodeterminação democrática com as ideias inerentes ao constitucionalismo.
De fato, a weak-form judicial review, ao contrário do modelo da strong-form, não pressupõe a substituição do entendimento do legislador ou do executor a respeito do conteúdo do texto constitucional, por uma decisão judicial, mas, sim, a realização de diálogo institucional provocado por pronunciamento proferido em sede da jurisdição constitucional.
A preocupação no sentido de se resguardar a atividade legislativa é consentânea com os apontamentos de autores adeptos do minimalismo no âmbito da jurisdição constitucional, que têm por lastro algumas das dificuldades enfrentadas nos processos decisórios nas cortes constitucionais.
A propósito do tema, Cass Sunstein, ao defender o minimalismo judicial, faz referência a alguns aspectos relevantes a serem considerados no âmbito da jurisdição constitucional: a) custos envolvidos na tomada de decisão. Não se deve desconsiderar a existência de custos relevantes ao Judiciário para decidir casos complexos (como o que ora se apresenta), ao se coletar informações, processá-las, estabelecer e avaliar variáveis que poderiam resultar, no presente ou no futuro, da solução imaginada; b) custos relacionados aos erros decisórios. Sendo certo que não se pode prever e mensurar todo e qualquer tipo de variável que poderá advir de uma solução criada, haveria de ser sopesada a possibilidade de erro e, por conseguinte, a necessidade de se superar determinada solução pensada no âmbito da jurisdição constitucional; c) a necessidade de se contemplar visões pluralistas sobre o tema em apreço. Nesse aspecto, deve-se reconhecer o papel fundamental exercido pelas figuras dos amici curiae, no sentido de ampliação do debate suscitado; d) limitações cognitivas, racionalidade limitada e consequências inesperadas. As teorias institucionalistas reforçam a ideia de que a hiperracionalidade não condiz com a realidade prática dos agentes, de modo que as referidas circunstâncias também devem ser levadas em consideração e; e) necessidade de se promover o debate democrático[4].
É bem verdade que vários dos apontamentos feitos por Cass Sunstein podem, igualmente, ser direcionados à própria atividade legislativa, o que indicaria, por si só, não haver relação de superioridade no que concerne à qualidade das soluções escolhidas. Ora, não é pelo fato de se alterar o locus decisório que se verificará brotar a hiperracionalidade capaz de prover informações plenas e de fazer previsões amplas e suficientes. Os apontamentos, no entanto, são mais correlatos aos desafios percebidos pelo Judiciário em agregar informações, expertise e capacidade técnicas para testar todas as variáveis possivelmente envolvidas[5].
Preocupação semelhante se verifica em famoso texto produzido pelo juiz da corte sul-africana Albie Sachs, que, ao tratar do clássico caso Grootboom, asseverou que seria exatamente para isso que serviria o Parlamento, ou seja, para promover audiências e para receber inputs de uma variedade de pessoas com expertise particular em diversas áreas[6].
Quer nos parecer, todavia, que, tal como preconizado por Mark Tushnet, o pronunciamento do STF, ainda que não concluído, promoveu um relevante incentivo no sentido de se induzir resposta legislativa à proposta então formulada[7].
Posteriormente, em 9/10/2014, o caso retornou à pauta de julgamentos do Plenário do STF, quando o ministro Dias Toffoli abriu divergência e votou pelo provimento ao recurso do INSS, ante o entendimento de que não seria legítimo o pleito relativo a novo cálculo do benefício em decorrência da desaposentação. Na oportunidade, o posicionamento firmado pelo ministro Dias Toffoli foi acompanhado pelo ministro Teori Zavascki. Em seguida, o julgamento foi novamente suspenso após pedido de vista da ministra Rosa Weber.
Havia, portanto, além do posicionamento do ministro Marco Aurélio no sentido de reconhecer o direito à desaposentação, duas alternativas: a) a proposta do ministro Roberto Barroso que reconhecia o direito a partir de um cálculo que contemplasse as premissas acima sintetizadas; e b) a proposta do ministro Dias Toffoli que negava o direito à desaposentação.
Diante das alternativas ainda em debate, no âmbito do STF, houve, em 2015, esforços por parte do Poder Legislativo para a apresentação de uma solução política para o tema. Pretendeu-se formular regulamento específico para a desaposentação, no âmbito do Projeto de Lei de Conversão 15/15, que resultou na edição da Lei 13.183/2015. Ocorre que o referido dispositivo foi vetado pela então presidente da República, e o veto presidencial foi mantido em sessão ocorrida em 15/12/2015 no Plenário da Câmara dos Deputados. As razões do veto indicam que a regulamentação inovaria no ordenamento jurídico ao permitir a denominada “desaposentação”, o que contrariaria os pilares do sistema previdenciário brasileiro, cujo financiamento é intergeracional e adota o regime de repartição simples[8].
Após a tentativa de regulamentação normativa da eventual possibilidade de desaposentação, por parte do Poder Legislativo, o caso voltou à pauta do Supremo Tribunal Federal, nos termos acima mencionados. Na oportunidade, expressamente foi reconhecida a legitimidade do processo legislativo que teve seu curso e que resultou (mal ou bem) em decisão do legislador a respeito do tema. Ora, se omissão há, conforme alertou o ministro Gilmar Mendes, foi produto de deliberação específica do legislador a respeito, que entendeu não ser conveniente e oportuno chancelar e regulamentar, por razões políticas, o direito pretendido pelos segurados. Tratar-se-ia, nos termos empregados no referido julgamento do denominado “silêncio eloquente”.
Diante disso, a conclusão prevalecente, em apertada maioria (6 a 4), foi no sentido da impossibilidade de se realizar a renúncia de aposentadoria anteriormente concedida, para o fim de novo enquadramento, após um período adicional de contribuição, com vistas à majoração do benefício previdenciário.
O ministro Dias Toffoli, que abriu a divergência que acabou prevalecendo, entendeu, em suma, que, a) muito embora a Constituição Federal não vede a desaposentação, a legislação ordinária o faz de forma legítima; b) a proibição da desaposentação está em consonância com o sistema previdenciário adotado no país, bem como com os princípios constitucionais que o fundamentam e; c) “havendo, no futuro, efetivas e reais razões fáticas e políticas para a revogação dessas normas, ou mesmo para a instituição e a regulamentação do instituto da desaposentação, como foi também salientado na parte final do respeitável voto do eminente ministro relator, o espaço democrático para esses debates há de ser respeitado, qual seja, o Congresso Nacional, onde deverão ser discutidos os impactos econômicos e sociais mencionados pelas partes e interessados (…)”.
Verifica-se, portanto, que, muito embora divergentes no que concerne ao mérito das soluções apresentadas, os ministros Dias Toffoli e Roberto Barroso — cujos votos representaram as duas correntes em discussão — expressamente resguardaram, dentro de certos parâmetros constitucionais, a plena viabilidade de formulações de alternativas políticas para as questões postas em discussão.
Tais provocações, reitere-se, foram reverberadas e atendidas no âmbito do Poder Legislativo, o que resultou no posicionamento político acima referido, posicionamento esse que, ao final, restou devidamente prestigiado no julgamento ocorrido em 26/10/2016.
Fonte: IEPREV